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    segunda-feira, 24 de dezembro de 2007


    Murro no estômago
    A reportagem SIC de ontem foi sobre Balneários Públicos. Eu não sabia que ainda existiam. Não me tendo por pessoa desligada do mundo, calculo que muita gente também não soubesse. Em Lisboa há 22. Vinte e dois. São usados para tomar banho por pessoas que não têm casa, ou têm casa sem casa-de-banho, ou têm casa com casa-de-banho mas preferem ir ao balneário.

    A reportagem SIC de ontem foi sobre o Balneário Público de Alcântara. Tem cerca de 400 utentes regulares. Quase 400 pessoas que moram na freguesia de Alcântara em casas antigas sem casa-de-banho. Quase todos de idade avançada, fomos assistindo às suas histórias e às dos funcionários que ali trabalham. Há pessoas doentes. Há pessoas que tiveram bons empregos durante décadas e depois. Há aquela senhora de 87 anos que não toma banho em casa porque mora sozinha e tem medo de entrar na banheira. Diz que não tem alegria desde que o marido morreu e o filho casou e foi para França. Não tem televisão, tem um rádio do tempo das válvulas que não liga. Os seus dias são passados sentada à mesa da cozinha com aquele olhar vazio de quem olha para dentro, vai à janela ver os eléctricos e depois ao balneário.

    As pessoas que vão ao balneário tomar banho não vão tomar banho. Vão sentir-se menos sozinhas. Vemos dois homens, um trintão e um quarentão a fazerem a barba no mesmo lavatório. A barba sai mal ao mais novo porque a lâmina está velha. O mais velho pede desculpa por não lhe emprestar a sua, mas está infectado, a “Cidália”. Ouve-se tosse de turberculose, vê-se um homem aflito do coração, lá vêm a ambulância e a vmer.

    Vemos os funcionários, eles próprios já não são novos, mas com uma energia e bom humor que sendo-lhes naturais, acredito que vêm também do hábito de ali trabalhar. Nos primeiros tempos deve ter sido mais complicado. Agora já brincam com as velhinhas, há palmadinhas nas costas, piscadelas de olho e, claro, ajuda a alguns para lhes dar o banho.

    Um homem que perdeu o emprego ganha agora uns trocos a arrumar carros e vai ali tomar banho. Se calhar, alguém que assistiu à reportagem e um dia destes estacionar com a sua ajuda e o reconhecer, já lhe vai dar uma moeda. Antes não dava.

    Logo à noite, se tudo correr como é tradição, nos telejornais haverá reportagens de 1 ou 2 minutos numa qualquer sopa dos pobres, onde vão filmar as couves fumegantes e trocar meia-dúzia de palavras com algumas pessoas. Já ninguém liga, a repetição torna-nos indiferentes e estamos todos nos nossos jantares.
    A reportagem de ontem teve o mérito primeiro de ter tempo. Tempo para ouvir as pessoas, para nos mostrar, para nós digerirmos.

    Palas nos olhos. É a expressão que me ocorre. Andamos na mesma cidade com aquelas palas nos olhos que se põem nos burros para não se desviarem do caminho. Da loja x, vamos para o restaurante y, para o museu z, visitamos a casa do A, da B. Fazemos sempre os mesmos trajectos, vamos sempre aos mesmos sítios e não olhamos à volta no percurso.
    Esta e outras realidades do mesmo espaço onde vivemos não existem para nós. Gostamos de tirar fotografias pitorescas de casas antigas (Lisboa é tão bonita) e se no enquadramento ficar uma velhinha de lenço na cabeça, melhor. E quanto mais rugas tiver, melhor o efeito na fotografia a preto e branco.
    Há milhares de pessoas que para nós são paisagem, imersas nos muros da cidade. Ver-lhes a história, ouvi-los é um murro no estômago bem dado.

    # Jorge Moniz |