frutos de sombra













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    quinta-feira, 29 de maio de 2008


    Cruzamentos
    Chama-se Ana. É a primeira vez que vem para aqui. Deixou a bicicleta ali atrás naquele desvio da marginal, caminhou sobre as rochas e sentou-se na última. Abraça os joelhos cobertos pelas calças de treino cinzentas, pousa o queixo nas mãos e fita o mar sem o ver, tentando ver-se a si no reflexo da água. Não saberá dizê-lo concretamente, mas foi por isso que para aqui veio, para aproveitar o reflexo da água. É no mar cinzento (o tempo tem estado de chuva) que procura clarificar os seus sonhos de dezoito anos, perceber quem é, o que quer.

    Chama-se Patrícia. Quando se farta dos números sai mais cedo do trabalho, voa pela marginal e desvia para esta escapatória onde se deixa ficar dentro da carrinha. Está demasiado confortável no seu mundo para sair dele - o ar livre deixa-a indefesa. Olha o mar e tenta não pensar no trabalho, pensando no trabalho. Não pensar no dia, pensando nos anos. Questiona as decisões que sempre teve facilidade em tomar, casar com este, entrar naquela empresa, não ter filhos, comprar esta carrinha, chegar à direcção, divorciar-se. A questão que o mar lhe devolve é se esta solidão que nunca a incomodou veio agora para ficar e afinal devia ter sido um critério nas opções do passado.

    Chama-se Paula e veio conversar com o mar. Está a começar a chover, por isso (e apenas por isso) deixa-se ficar ao volante do Clio. Mas baixa o vidro e pousa o queixo na porta. Gosta do cheiro da terra molhada, do cheiro da maresia. Acha graça aos pingos que lhe caem e depois escorregam pelo nariz. Passa a língua pelos lábios a recolher o sabor da chuva. Todos os dias tem este ritual, uma conversa com o mar antes de chegar a casa, para despir uma pele e vestir a outra. Não lhe custa, é apenas um hábito, um deve e haver do dia que passou. Dentro da sua cabeça há gavetas onde se dobram ideias passadas a ferro e tudo fica arrumado até à manhã seguinte.

    A correr passam o Rui, depois o Pedro, em sentido contrário o Jorge. E pensam ofegantes que estas escapatórias da marginal são afinal também divãs. Está a chover mais, vou acelerar o passo.

    # Jorge Moniz |